Lembranças de Paisagem
Bitu Cassundé
A pesquisa do artista Bruno Faria atravessa e amplifica diferentes interesses. Hábil propositor, ele elabora aproximações e provocações entre diferentes sistemas, os quais, mesmo quando não se relacionam, repercutem lugares da memória, da história da arte. Reinauguram modos de reler/rever possíveis e impossíveis Brasis, com suas idiossincrasias, violentas lembranças, apagamentos e insubordinações.
Se evidenciarmos um constructo que atravesse todos esses sistemas, chegamos ao lugar da paisagem e às suas derivações, que parte da dimensão íntima em acessar diferentes arquivos e abarca interesses pulsantes na sua produção: como o do modernismo brasileiro, com seus ícones, clichês e reafirmações; as paisagens sonoras que ecoam diferentes temporalidades, lugares e narrativas; as cidades nas suas diferentes dimensões, escalas e publicidades; as paisagens políticas que ratificam violências e apagamentos, seja pelo viés histórico ou econômico; as paisagens da arte e os seus distintos sistemas de legitimação/deslegitimação.
Há, ainda, a paisagem-linguagem, que através da oralidade e da não materialidade reafirmam as escritas carregadas por corpos, memórias e subjetividades — uma paisagem móvel que singra outras paisagem que as alimentam, que se retroalimentam e que se projetam na voz, na memória, nos gestos. Uma paisagem do gesto, ou um gesto da paisagem.
Velar é uma estratégia utilizada por Bruno Faria na série Lembranças de Paisagem (2016/2020), que nomeia a exposição apresentada no Centro Cultural Mercado Eufrásio Barbosa. O conjunto é formado por 21 flâmulas — essas bandeirinhas que fazem parte do imaginário afetivo brasileiro, geralmente produzidas nos anos de 1960 e 1970 e que evocavam paisagens de um Brasil ufanista, o país do futuro.
O futuro chegou, o Brasil não deu certo, mas é impossível fugirmos da dimensão do afeto e da lembrança que as flâmulas projetam. No entanto, há o aspecto da manipulação elaborada pelo artista — algumas são bem sutis, quase imperceptíveis. Todos os elementos gráficos da linguagem verbal são vedados, subtraídos, referências que, eliminadas, evidenciam o protagonismo da imagem, da lembrança. É como colocar o olho em um daqueles monóculos bastante presentes nas feiras nordestinas, nos retratos populares — eles nos conduzem a memórias de outros sujeitos, mas que nos capturam.
Integra também a exposição o trabalho “10 x paisagem’’, 2020 da série “Paisagem falida”, que reflete, através da obsolescência de processos manuais e industriais, a ressignificação de elementos como o carbono, tão presente em determinadas décadas nas práxis educacionais e estudantis. Os desenhos que indicam um movimento, elaborados a partir da folha do carbono, reconstroem uma ruína da paisagem, ou uma paisagem da ruína — uma forte presença em nossos horizontes.
Bitu Cassundé
Pesquisador/Curador